
"Todos os dias tropeço num novo trabalho sobre O Código Da Vinci, de Dan Brown. Falo só daqueles livros que são publicados em Itália, pois fornecer uma bibliografia de tudo o que apareceu sobre o assunto no mercado mundial estaria muito além das minhas possibilidades.
Os títulos recentes que vi incluem Verdade e Ficção em O Código Da Vinci, de Bart Ehrman, Descodificando o Código Da Vinci, de Darrell L. Bock, e Segredos do Código, de Dan Burstein, além de alguns esforços produzidos lo- calmente. E há muito mais além disto.
Se, no entanto, quisermos informação actualizada sobre todos os artigos que versam este tópico, podemos tentar visitar o sítio da Opus Dei na Internet. Pode-se confiar nele, mesmo se se for ateu. A verdadeira questão, como veremos, é porque é que o mundo católico está a envidar os maiores esforços para demolir o livro de Dan Brown. Mas uma coisa é certa quando os escritores católicos dizem que toda a informação nele contida é falsa, podemos confiar na palavra deles.
Deixemos uma coisa clara. O Código Da Vinci é um romance e como tal o autor tem o direito de inventar tanto quanto quiser. O livro está particularmente bem escrito e consegue-se ler num fôlego. Nem há nada de grave no facto de Brown começar por nos dizer que aquilo que está prestes a contar- -nos são factos históricos.
O leitor profissional está acostumado a estes apelos narrativos à verdade; faz parte do jogo da ficção. O problema começa quando nos apercebemos de que um grande número de leitores ocasionais acredita verdadeiramente nessa declaração, da mesma forma que os espectadores dos teatros de fantoches tradicionais sicilianos insultam o pérfido traidor Gano di Maganza.
Para desmontar a alegada veracidade histórica do Código não é preciso muito. Tudo o que é preciso é um artigo relativamente curto (e foram escritas peças excelentes sobre este assunto) que salienta duas coisas a primeira é que toda a história acerca do casamento de Jesus com Maria Madalena, a viagem dele para França, a fundação da dinastia merovíngia e do Priorado de Sião são tudo lérias que circulam há décadas numa pletora de livros e brochuras escritos por devotos das ciências ocultas (desde o livro de Sedes sobre Rennes-le-Château até a O Cálice Sagrado, de Baigent, Leigh e Lincoln).
O facto de todo esse material conter uma longa série de inverosimilhanças já foi salientado e demonstrado há bastante tempo. Além disso, parece que Baigent, Leigh e Lincoln ameaçaram pôr (ou puseram mesmo) um processo judicial contra Brown, acusando-o de plágio.
Se eu escrever uma biografia de Napoleão (relatando acontecimentos reais), não posso processar alguém que tenha escrito outra biografia de Napoleão - mesmo que com pormenores inventados - que contenha os mesmos acontecimentos históricos. Se o fizer, então estou a queixar-me do roubo da minha ultra-original mas ficcional criação (ou fantasia, ou história ou o que quer que seja).
A segunda coisa é que o livro de Brown está pejado de erros históricos, como o de ir procurar informações sobre Jesus (alegadamente censuradas pela Igreja) nos pergaminhos do Mar Morto - que não falam nunca sobre Jesus mas antes sobre assuntos judeus como por exemplo a seita conhecida como os Essenes. O facto é que Brown confundiu os pergaminhos do Mar Morto com os de Nag Hammadi.
Acontece também que, para atingir o número de páginas suficiente para fazer um livro, a maioria das obras que aparecem sobre o fenómeno Dan Brown, especialmente as bem escritas, fazem uma lista de todas as coisas que ele plagiou, até ao mais ínfimo pormenor.
E assim, num certo sentido perverso, apesar de esses livros terem sido escritos para desmascarar falsidades, contribuem, no entanto, para a actual circulação de todo esse material oculto. Consequentemente (se aceitarmos a ideia interessante - que foi, na realidade, sugerida -, O Código é uma conspiração satânica), cada refutação daquele reproduz e amplifica as insinuações que ele contém. No que respeita a conspirações, temos de concordar que esta é uma das boas. Porque será que, mesmo quando O Código é refutado, continua a reproduzir-se?
Porque as pessoas têm sede de mistérios (e conspirações) e assim tudo o que é necessário fazer é oferecer-lhes um. E mesmo quando se lhes diz que foi tudo cozinhado por uma parelha de conspiradores, a tendência das pessoas é acreditarem de imediato.
Penso que é isto que está a preocupar a Igreja. A crença no Código (e noutro Jesus) é um sintoma de "descristianização". Quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, como costumava dizer Chesterton, não é que já não acreditem em nada, acreditam é em tudo. Até nos meios de comunicação.
Sei que estou a penas a dar voz a uma impressão, mas, quando uma imensa multidão estava na Praça de São Pedro à espera da notícia da morte de João Paulo II, fui surpreendido pela visão de um jovem de QI duvidoso. Com o telemóvel colado a um ouvido e ostentando um grande sorriso, acenava alegremente para a câmara de televisão. Porque é que ele estava ali? (E porque é que havia tantos outros como ele, enquanto talvez milhões de verdadeiros crentes estavam sentados nas suas casas a rezar?)
Enquanto esperava um acontecimento sobrenatural inspirado nos media, não estaria ele preparado para acreditar que Jesus casou com Maria Madalena e estava ligado por um qualquer laço dinástico místico ao Priorado de Sião e a Jean Cocteau?"
Umberto Eco
In, Diário de Notícias - secção Opinião - 20 Agosto 2005