Extracto do Sermão de S. António de 1642, do Padre António Vieira, pregado na Igreja das Chagas.
Faz 363 anos dia 13.
O que mudou nestes 363 anos, que o possa desactualizar...
Mas perguntar-me-á alguém, ou perguntara eu a Santo António:
- Que remédio teremos nós para remediar os remédios? – Muito fácil, diz Santo António: Vos estis sal terra. Para se curar uma enfermidade, vê-se em que peca a enfermidade; para se curarem os remédios, veja-se em que pecaram os remédios. Os remédios, como diz a queixa pública, pecaram na violência; muitos arbítrios, mas violentos muito. Pois modere-se a violência com a suavidade, ficarão os remédios remediados. Foram ineficazes os tributos por violentos; sejam suaves, e serão efectivos. Vos estis sal terra: Duas propriedades tem o sal, diz aqui Santo Hilário; conserva, e mais tempera: é o antídoto da corrupção e lisonja do gosto; é o preservativo dos preservativos e o sabor dos sabores: Sal incorruptionem corporibus, quibus fuerit aspersus, impertit, et ad omnem sensumconditi saporis aptissimus est. Tais como isto devem ser os remédios com que se hão-de conservar as repúblicas. Conservativos sim, mas desabridos não. Obrar a conservação e saborear, ou ao menos não ofender o gosto, é o primor dos remédios. Não tem bons efeitos o sal, quando aquilo se salga fica sentido. De tal maneira se há-de conseguir a conservação, que se escuse quanto for possível o sentimento. Tirou Deus uma costa a Adão para a fábrica de Eva; mas como a tirou? – Immisit Deus soporem in Adam, diz o texto sagrado. Fez Deus adormecer Adão, e , assim dormindo, lhe tirou a costa.
Pois por que razão dormindo, e não acordado? – Disse-o advertidamente o nosso português Oleastro, e é o pensamento tão tirado da costa de Adão, como das entranhas dos portugueses: Ostendit, quam difficile sit ab homine auferre, quod etiam in ejus cedit utilitatem: quam ob rem opus est ab eo surripere, quod ipse concedere negligit. A costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão dormindo e não acordado, para mostrar quão dificultosamente se tira aos homens, e com quanta suavidade se deve tirar, ainda o que é para seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependia não menos que a conservação e propagação do género humano; mas repugnam tanto os homens a deixar arrancar de si aquilo que se lhes tem convertido em carne e sangue, ainda que seja para bem de sua casa e de seus filhos, que por isso traçou Deus tirar a costa a Adão, não acordado, senão dormindo; adormeceu-lhe os sentidos, para lhe escusar o sentimento. Com tanta suavidade como isto, se há-de tirar aos homens o que é necessário para sua conservação. Se é necessário para a conservação da pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja; mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam. Deus tirou a costa a Adão, mas ele não o viu, nem o sentiu; e se soube, foi por revelação. Assim aconteceu aos bem governados vassalos do imperador Teodorico, dos quais por grande glória sua dizia ele: Sentimus auctas illationes, vos addita tributa nescitis: «Eu sei que há tributos, porque vejo as minhas rendas acrescentadas; vós não sabeis se os há, porque não sentis as vossas diminuídas». Razão é que por todas as vias se acuda à conservação; mas como somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo. Tão ásperos podem ser os remédios, que seja menos feia a morte, que a saúde. Que importa a mim sarar do remédio, se hei-de morrer do tormento?
Divina doutrina nos deixou Cristo desta moderação na sujeita matéria dos tributos. Mandou Cristo a S. Pedro, que pagasse o tributo a César, e disse-lhe que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe acharia uma moeda de prata, com que pagasse. Duas ponderações demos a este lugar o dia passado; hoje lhe daremos sete a diferentes intentos. Se Deus faz milagres sem necessidade, porque o fez Cristo nesta ocasião, sendo ao parecer supérfluo? Pudera o Senhor dizer a Pedro, que fosse pescar, e que do preço que pescasse, pagaria o tributo, não do preço, senão da moeda que se achar na boca do peixe? – Quis o Senhor, que pagasse S. Pedro o tributo, e mais que lhe ficasse em casa o fruto do seu trabalho, que este é o suave modo de pagar tributos. Pague Pedro o tributo, sim, mas seja com tal suavidade e com tão pouco dispêndio seu, que satisfazendo às obrigações de tributário, não perca os interesses de pescador. Coma o seu peixe como dantes comia, e mais pague o tributo que dantes não pagava. Por isso tira a moeda não do preço, senão da boca do peixe: Aperto ore ejus, invenies staterem. Aperto ore: (Mat. XVII – 26). Notai. Da boca do peixe se tirou o dinheiro do tributo; porque é bem que para o tributo se tire da boca. Mas esta diferença há entre os tributos suaves e os violentos: que os suaves tiram-se da boca do peixe; os violentos, da boca do pescador. Hão se de tirar os tributos com tal traça, com tal indústria, com tal invenção, - Invenies staterem – que pareça o dinheiro achado e não perdido; dado por mercê da ventura e não tirado à força da violência. Assim o fez Deus com Adão; assim o fez Cristo com S. Pedro; e para que não diga alguém, que são milagres a nós impossíveis, assim o fez Teodorico com seus vassalos. A boa indústria é suplemento da omnipotência, e o que faz Deus por todo-poderoso, fazem os homens por muito industriosos.
Sim. Mas que indústria poderá haver para que os tributos se não sintam, para que sejam suaves e fáceis de levar? Que indústria? Vos estis sal terra. Não se mete Santo António a discursar arbítrios particulares, que seria coisa larga e menos própria deste lugar, posto que não dificultosa: um só meio aponta o Santo nestas palavras, que transcende universalmente por todos os que se arbitrarem, com que qualquer tributo, se for justo, será mais justo, e se fácil, muito mais fácil e mais suave: Vos estis sal terra. Nota aqui S. Crisóstomo a generalidade com que falou Cristo aos discípulos. Não lhes chamou sal de uma casa, ou de uma família, ou de uma cidade, ou de uma nação, senão sal de todo o mundo, sem exceptuar a ninguém. Vos estis sal terra, non pró una gente, sed pró universo mundo – comenta o santo padre. Queremos senhores, que o sal, qualquer que for, não seja desabrido? Queremos que os meios da conservação pareçam suaves? – Non pró una gente, sed pró universo mundo. Não sejam os remédios particulares, sejam universais; não carreguem os tributos somente sobre uns, carreguem sobre todos. Não se trata de salgar só um género de gente: Non pro una gente; reparte-se e alcance o sal a terra: Vos estis sal terra. Convida Cristo aos homens para a aceitação e observância de sua lei, e diz assim: Venite ad me omnes, qui laboratis et onerati estis et ego reficiam vos (Mat. XI – 28): «Vinde a mim todos, que tão cansados e molestados vos traz o mundo, e eu vos aliviarei»; Tollite jugum meum super vos, et invenietis requiem asnimabus vestris (Ibid. – 29): «Tomai o meu jugo sobre vós, e achareis descanso para a vida»; Jugum enim meum suave est et ónus meum leve (Ibid. – 30): «Porque o jugo de minha lei é suave e o peso dos meus preceitos é leve».
Ora se tomarmos bem o peso à Lei de Cristo, havemos de achar que tem alguns preceitos pesados, e, segundo a natureza, assaz violentos. Haver de amar aos inimigos; confessar um homem suas fraquezas a outro homem; bastar um pensamento para ofender gravemente a Deus e ir ao Inferno; estes e outros semelhantes preceitos não há dúvida que são pesados e dificultosos; e por tais os estimou o mesmo Senhor, quando lhes chamou cruz nossa: Tollat crucem suam, et sequatur me (Ibid. XVI – 24). Pois se os preceitos da lei de Cristo, ao menos alguns, são cruz pesada, como lhes chama o Senhor jugo suave e carga leve? Jugum enim meum suave est, et ónus meum leve?
Antes de o Senhor lhes chamar assim, já tinha dito a causa: Venite ad me omnes. A lei de Cristo é uma lei que se estende a todos com igualdade e que obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao pequeno; ao alto e ao baixo; ao rico e ao pobre, a todos mede pela mesma medida. E como a lei é comum sem excepção de pessoas e igual sem diferença de preceito, modera-se tanto o pesado no comum e o violento no igual, que, ainda que a lei seja rigorosa, é jugo suave; ainda que tenha preceitos dificultosos, é carga leve: Jugum meum suave est, et ónus meum leve. É verdade que é jugo, é verdade que é peso, nem Cristo o nega; mas como é jugo que a todos iguala, o exemplo o faz suave; como é peso que sobre todos carrega, a companhia o faz leve. Clemente Alexandrino: Non pratergredienda est aqualitas, qua versatur in distributionibus honorando justitiam: propterea Dominus, tollite, inquit, jugum meum super vos, quia benignum est et leve.
O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e contudo todos o pagam e ninguém se queixa, porque é tributo de todos. Se uns homens morreram e outros não, quem levara em paciência esta rigorosa pensão de imortalidade? Mas a mesma razão que a estende, a facilita; e porque não há privilegiados, não há queixosos. Imitem as resoluções políticas o governo natural do Criador: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustus (Mat. V – 45). Se amanhece o Sol a todos aquenta; e se chove o céu, a todos molha. Se toda a luz caíra a uma parte e toda a tempestade a outra, quem o sofrera?
Mas não sei que injusta condição é a deste elemento grosseiro em que vivemos, que as mesmas igualdades do céu, em chegando à terra, logo se desigualam. Chove o céu com aquela igualdade distributiva que vemos; mas em a água chegando à terra, os montes ficam enxutos e os vales afogando-se; os montes escoam o peso da água de si, e toda a força da corrente desce a alagar os vales. E queira Deus que não seja teatro de recreação para os que estão olhando do alto, ver nadar as cabanas dos pastores sobre os dilúvios de suas ruínas! Ora guardemo-nos de algum dilúvio universal, que, quando Deus iguala desigualdades, até os mais altos monts ficam debaixo da água. O que importa é que os montes se igualem com os vales, pois os montes são a quem principalmente ameaçam os raios; e reparta-se por todos o peso, para que fique leve a todos. Os mesmos animais de carga, se lha deitam toda a uma parte, caem com ela; e a muitos navios meteu nas mãos dos piratas a carga, não por muita, mas por descompassada. Se se repartir o peso com igualdade de justiça, todos o levarão com igualdade de ânimo: Nullus enim gravanter obtulit, quod cum aquitate persolvitur: Porque ninguém toma pesadamente o peso que se lhe distribui com igualdade – disse o político Cassiodoro.